Opinião (José Lúcio/ Juiz): Imagens e realidades.


Por vezes criam-se imagens tão fortes e persistentes que acabam por ocultar as realidades a que se reportam.

José Lúcio

(Juiz Presidente da Comarca de Beja)

No nosso tempo esse poder de criação de imagens reside essencialmente nos meios de comunicação social de massas, que dessa forma conseguem em grande medida determinar o que as pessoas pensam sobre realidades que só conhecem através dessa mediação.

Por esse motivo venho insistindo desde há muito pela necessidade de marcar uma presença constante dos temas do judiciário, e especificamente dos tribunais, na agenda corrente dos media tradicionais. E não sendo possível aceder a estes, ao menos aproveitar o terreno aberto pelas novas redes sociais, que já demonstraram a sua capacidade para influenciar, complementar ou até contrabalançar os primeiros.

Infelizmente, a ideia é boa (penso eu) mas difícil de concretizar. Os tribunais estão habituados a trabalhar no silêncio e na rotina. Nos seus afazeres diários pouca coisa acontece que possa suscitar o interesse de quem faz notícias, por natureza sempre à procura de novidades, de histórias, de algo que marque a diferença no cinzentismo do quotidiano.

 Assim, desgraçadamente, os tribunais e os juízes sofrem de uma tendência mediática fatal para a sua imagem: tendem a aparecer apenas por más razões ou pelos motivos piores. O que façam bem não se reveste de curiosidade alguma, nem constitui matéria jornalística, o que acontecer de mal na sua esfera de acção constitui assunto de inegável relevância pública.

Deste modo, não é de estranhar que as imagens consolidadas junto do público castiguem sistematicamente tribunais, juízes ou a justiça em geral. O que chega ao grande público é normalmente apenas e tão só o que pode contribuir para a degradação dessa imagem.

Há quem procure afanosamente entre milhares de sentenças disponíveis nas bases de dados uma em que seja possível localizar uma frase desastrada ou uma consideração menos feliz, para com elas construir uma notícia ou se possível um escândalo – pondo de lado como inúteis e maçadoras todas as outras desses muitos milhares de decisões em que nada encontrou que prendesse a atenção ou rompesse com a banalidade.

O Ministério da Justiça divulgou junto da comunicação social nestes últimos dias um comunicado em que tentava chamar a atenção para a evolução da realidade processual dos tribunais portugueses de primeira instância.

Desse comunicado consta, por exemplo, que os processos pendentes nos tribunais judiciais de primeira instância são os mais baixos dos últimos vinte e um anos; que no segundo trimestre de 2018 o número de acções executivas cíveis pendentes decresceu cerca de 12,8% face ao final do segundo trimestre de 2017, ou ainda que a 30 de junho de 2018 o número dessas acções registava o valor mais baixo dos últimos quinze anos (desde 2003 que o número de acções executivas cíveis pendentes nos tribunais judiciais de primeira instância não era tão reduzido).

Acrescentava-se que a taxa de resolução processual nessa área processual foi no segundo trimestre de 2018 de 164,2%, e que desse modo o segundo trimestre de 2018 foi o quinto trimestre consecutivo com taxa de resolução processual superior a 150%,

Informava-se ainda que o número de insolvências decretadas foi o mais baixo desde 2011 (num ano sofreram um decréscimo de 18,8%). Mais: a duração média destes processos, que era de nove meses no segundo trimestre de 2007 apresentava, no segundo trimestre de 2018, menos de um quarto desse valor (dois meses).

Esta comunicação oficial foi obviamente distribuída a todas as redacções de todos os órgãos de comunicação social. Os dados que dela constam são facilmente verificáveis, uma vez que remetem para as publicações da responsabilidade da Direcção-Geral da Política de Justiça que estão disponíveis na rede. Um cidadão ingénuo poderia pensar que a factualidade ali referida revestia inegável interesse noticioso e poderia dar origem a uma vaga de títulos de caixa alta. Pois, pelo contrário, e tal como estão a pensar os que me lerem, essa matéria não chegou a praticamente ninguém do respeitável público. A comunicação foi totalmente ignorada. Com este teor, tão contrário à narrativa obrigatória, não passa nada.

Como encarar este fenómeno? Que é injusto, evidentemente que é. E muito dificilmente reversível. Pela nossa parte, não nos conseguimos conformar.

Até porque, entretanto, os tribunais continuam a trabalhar. E estamos seguros que os resultados desse trabalho, os verdadeiros, se fossem devidamente conhecidos e valorados tornariam absurdas as caricaturas que frequentemente enchem os jornais.

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


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